Créditos de IBS e CBS: O Que a LC 214/2025 Considera Uso ou Consumo Pessoal — E as Inconstitucionalidades Envolvidas
A Reforma Tributária introduziu, com a LC nº 214/2025, um novo sistema de tributação sobre o consumo baseado na não cumulatividade plena. Mas, ao definir as hipóteses em que é vedado o direito ao crédito, o legislador acabou impondo limites que restringem o conceito constitucional de não cumulatividade, especialmente quando trata dos chamados bens e serviços de uso ou consumo pessoal, no Art. 57 da lei.
A análise do dispositivo, à luz dos princípios constitucionais e da técnica do crédito financeiro, revela não apenas excessos legislativos, mas possíveis inconstitucionalidades materiais.
O Que Diz o Art. 57 da LC 214/2025?
O caput e incisos do art. 57 estabelecem uma lista de bens e serviços que, por definição legal, não geram direito ao crédito de IBS e CBS, por serem considerados de uso ou consumo pessoal, como:
Joias, bebidas alcoólicas, derivados do tabaco, obras de arte, armas, itens recreativos e estéticos;
Gastos com imóveis, veículos e despesas vinculadas à manutenção;
Bens fornecidos a título gratuito ou com preço abaixo do mercado a pessoas físicas ligadas ao contribuinte (sócios, administradores, empregados e familiares).
Além disso, o artigo regula de forma minuciosa os critérios para exceção à regra de vedação — como no caso de empresas de segurança, fornecimento de alimentação no local de trabalho ou benefícios previstos em convenção coletiva.
Crítica Técnica: Quando a Lei Complementar Extrapola
A LC 214/2025, ao elencar bens e serviços que “se consideram” de uso ou consumo pessoal, afronta a técnica do crédito financeiro. Isso porque a Constituição não restringe o direito ao crédito com base no tipo de bem, mas sim na vinculação à atividade econômica do contribuinte.
A doutrina já aponta: bastaria repetir a fórmula tradicional — “não geram crédito os bens ou serviços alheios à atividade econômica” — para cumprir a finalidade legal. Ao criar categorias taxativas com base no nome do bem (como quadros, bebidas, esculturas etc.), a lei adota um viés fiscalista, assumindo que todo uso é indevido por presunção — o que é juridicamente problemático.
“Considera-se” = Subversão semântica?
A redação legal tenta criar efeitos jurídicos a partir de construções frágeis, usando a expressão “consideram-se” para qualificar automaticamente como uso pessoal situações que podem claramente ter caráter produtivo.
Exemplos:
Uma empresa de eventos pode adquirir obras de arte ou antiguidades como cenografia;
Um hotel de luxo usa bebidas alcoólicas e objetos decorativos para compor a experiência do hóspede;
Armas e munições são essenciais para empresas de segurança privada;
Clubes esportivos adquirem equipamentos de alto custo com fim econômico legítimo.
A lei, ao ignorar o contexto econômico do uso, desconsidera a realidade de diversos setores e viola o princípio da capacidade contributiva.
Inconstitucionalidade Material: O que está em jogo?
A não cumulatividade plena implica direito ao crédito sempre que há incidência na etapa anterior. A Constituição não autoriza a lei complementar a restringir esse direito com base em presunções absolutas, e muito menos a partir de listas taxativas de bens “de consumo pessoal”.
Ao restringir o crédito com base no tipo de bem ou na pessoa a quem foi destinado — e não na função econômica do uso — o artigo 57 extrapola sua competência e ofende frontalmente o art. 156-A, §3º da Constituição Federal.
Penalidades e ajustes previstos na lei
O artigo ainda prevê que:
Se for apropriado crédito indevidamente, o contribuinte será obrigado a recolher o valor correspondente com acréscimos legais (juros e multa);
Mesmo em casos de uso temporário por sócios ou empregados, haverá exigência proporcional com base na vida útil do bem;
E o regulamento deverá definir como identificar o uso por pessoa física — o que levanta dúvidas sobre como será essa fiscalização prática.
Conclusão: É possível resistir?
A tentativa de “blindar” créditos com base em generalizações, especialmente sem considerar a destinação econômica dos bens e serviços, fere garantias constitucionais.
A expectativa é que muitos desses dispositivos sejam questionados judicialmente, e que as empresas saibam identificar situações em que a negativa de crédito possa ser considerada ilegítima ou abusiva.
O princípio da não cumulatividade não admite que a lei complemente a Constituição por meio de presunções automáticas e listas fechadas, ignorando a complexidade das atividades econômicas e os múltiplos usos legítimos de determinados bens e serviços.
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